02 • as coisas que perdemos no fogo
- pri muniz
- 9 de set. de 2024
- 3 min de leitura
quem tem medo da vida real?
"começou com seus tremores, que não eram bem tremores, mas sim sobressaltos. sacudia as mãos no ar como se espantasse algo invisível, como se tentasse impedir que algo batesse nela (…) os professores notavam, mas tratavam de ignorar. nós também. era fascinante. ela desmoronava em público sem pudores e nós é que sentíamos vergonha"

confesso que sempre faço o discurso “leio de tudo", mas a verdade é que as literaturas de terror e de horror1 nunca estão na minha lista. o motivo? sou medrosa. no máximo, arrisco um luz acesa e vamos de oração. porém, desde a flip de 2019, quando mariana enríquez veio ao brasil participar do evento, fiquei curiosa sobre o seu tipo de horror.
mariana escreve sobre espíritos, casas amaldiçoadas e mortos que voltam à vida, mas não são esses os maiores horrores de suas histórias. nos doze contos que fazem parte do livro, o horror da realidade se impõe ao sobrenatural: pobreza, violência policial, violência de gênero, ditadura, vícios, transtornos mentais e poluição são alguns dos horrores do cotidiano que ganham voz, principalmente, através de narradoras mulheres.
apesar de alguns momentos tensos – sobretudo nos contos “o quintal do vizinho” e “fim de curso”, porque a loucura me assusta profundamente – a escrita habilidosa de mariana nos faz continuar e só nos damos conta do sobrenatural quando ela o insere, silenciosamente, como um vulto na madrugada.
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"quando se debruçaram juntos para espiar o quintal do vizinho a corrente não estava mais lá, nem o menino nem sua perna nem seu pé (…). miguel fez o que paula mais temia. — você está louca — disse, e desceu”
ilustração de capa • edição em espanhol
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horror latino-americano
em uma recente entrevista, a escritora disse que “o terror tem muito da ficção do trauma”. faz sentido, especialmente quando falamos sobre as experiências latino-americanas. são muitos os traumas que nos unem, mas quatro deles têm nos aterrorizados há séculos: a colonização, o racismo, a ditadura militar e a desigualdade econômica. todos perfeitamente conectados.
pensadoras como grada kilomba e jota mombaça vêm elaborando esses traumas do ponto de vista da ferida. nesse sentido, grada é certeira quando diz que "o colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada. uma ferida que dói sempre, por vezes infecta, e outras vezes sangra". o colonialismo é a nossa maior história de horror.
ao longo dos séculos, a falta de tratamento dessas feridas tem nos feito encarar o horror da realidade como algo cotidiano. no brasil, já não conseguimos separar a sensação de viver uma mistura de terror/horror e distopia. e quando penso nos monstros que nos assombram, a primeira coisa que me vêm à cabeça é a branquitude - sobretudo a autoritária, um parasita que chega infeccionando tudo nessa ferida não tratada.
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Não acho que essa vai ser uma leitura que vai agradar muita gente. não só pelo desconforto característico do gênero, mas também pelo corte seco que acompanha os finais de cada história: todos os contos de “as coisas que perdemos no fogo” possuem final aberto. eu, particularmente, gosto, mas entendo quem não curte. sobre esse tópico, gosto da resposta de ursula k. le guin ao ser questionada sobre qual era o significado dos seus livros: “essa tarefa não é minha, querido. essa tarefa é sua”.
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imagem: rolling stone
mariana enríquez é jornalista, romancista, contista e colaboradora de diversas revistas. representante da chamada “nova narrativa argentina”, escreve literatura de horror. (relicário)
para além do livro:
“o horror que emana do poder", uma entrevista com mariana enríquez
“terror cotidiano na literatura", resenha de antônio xerxenesky
trecho da fala de mariana na flip de 2019
sobre o gótico latino-americano
literatura brasileira de horror, episódio #74 do 451 MHz
último livro de horror que li: crianças nas sombras – muito bom!
próxima leitura que quero fazer dela: os perigos de fumar na cama
impossível não pensar na história de horror que a argentina acabou de escrever: a ficção já veio pronta.